Sintra é o mais belo adeus da Europa quando enfim encontra o mar. Camões o soube quando os seus navegadores a fixaram como a última memória da terra, antes de não verem mais que “mar e céu”. E no entanto, ou por isso, o espaço que ela nos abre não é o da infinitude mas o que a limita a um envolvimento de repouso.
Alguém a trouxe de um paraíso perdido ou de uma ilha dos amores para uma serenidade de amar. Ela é assim o refúgio de nós próprios e de todo o excesso que nos agride ou ameaça.
O sagrado dos seus bosques de frescura e de sombra não se nos interioriza como o espaço de uma catedral, mas exterioriza-se-nos em acalmia de uma mitologia pagã. As ninfas que habitaram estes bosques, deixaram, ao abandoná-los, a memória física de um prazer sensível. Sintra é o único lugar do país em que a História se fez jardim. Porque toda a sua legenda converge para aí e os seus próprios monumentos falam menos do passado do que de um eterno presente de verdura. E a memória do que foi mesmo em tragédia desvanece-se no ar ou reverdece numa hera de um muro antigo.
Em Sintra não se morre – passa-se vivo para o outro lado. Porque a morte é impossível no vigor da beleza. E a memória do que passou fica nela para colaborar. Eu disse que as ninfas abandonaram estes bosques. Mas não é de todo improvável que voltemos a encontra-las. Como todas as divindades pagãs que nasceram para perdurarem no eterno da sua juventude. O aviso de Dante para abandonarmos as esperanças às portas do Inferno, inverteria aqui o sentido para se entrar no Paraíso. E não precisaríamos de uma Beatriz para no-lo iluminar porque estaria invisível no visível de outra beleza. O que deixamos à porta é o excesso do que nos oprime e convulsiona e incendeia as noites de insónia. O que deixamos à porta é justamente o Inferno. Possível é assim que a olhos já cristianizados, nós encontremos neste bosque deleitoso medievo os seus anjos mensageiros, educadores da Justiça, Fortaleza e outras virtudes que lá fora nos faltam. “Porque a vida do ermo, solitária e apartada, é vida angelical, mas a vida da cidade é ruído do inferno”. Não será possível sabê-lo no fresco repouso da sua sombra? Porque é no silêncio repousado que a meditação tem melhor voz de se ouvir. Mas o inferno insiste em voltar sob a forma do trânsito e do ruído. E com eles a poluição dos ares deste verdadeiro locus amoenus de que variamente nos fala a literatura medieval latina. Até quando?
A vilegiatura de Sintra manteve-se na suspensão de tudo quanto a perturbava, mesmo da mundanização imposta das praias. Porque a praia é uma invenção dos começos do século passado. A imagem dessa vilegiatura era a de um senhor composto num vestuário de rigor como o era o das suas damas. Porque a frescura dos bosques era bastante para a canícula não ter razão e a reserva do corpo se cumprir. Mas a praia desautorizou essa compostura e severidade. E Sintra, renovada no paganismo, é hoje um compromisso entre as ninfas discretas da solidão desses bosques e as nereidas da nudez solar. Não é possível pedir-se a prevalência de umas sobre as outras. Mas é de pedir ou desejar que a cidade a não invada com o desembaraço expeditivo de quando expulsa dela o paraíso para o inferno entrar. Que esse inferno passe de largo com a perda da esperança, para que ela e o mais aqui continuem. Porque, como uma mesquita ou em certas salas reservadas, há que deixar à porta o que de impureza arrastamos com os pés. Ou como num atelier, como Picasso dizia, é necessário deixar à entrada tudo o que seja perturbação para a arte se cumprir. Pagã ou cristã ou mesmo moura, Sintra tem o sagrado do outro lado da vida imediata e utilitária. A convulsão apazigua-se, o ruído afoga-se no silêncio da floresta, o tempo abranda-se numa lentidão genesíaca. Um banco e uma sombra tranquiliza-nos do nosso excesso e é possível então ouvir em nós a voz que outras vozes ensurdeceram. Amar o seu silêncio, a frescura inicial da alma, a História e monumentos feitos elementos da Natureza. Amar a legenda sempre recente, a memória breve, a iniciação à alegria que não cansa.
Louvar Sintra. Amar Sintra.