Depoimentos

Fernando Catarino

A paisagem de Sintra e a sua vegetação

De entre os elementos das paisagens de Sintra, quer naturais quer humanizadas, são as massas de vegetação que melhor definem e enriquecem. Mas para se perceber o peso que o mesmo vegetal tem nos diferentes panoramas da Serra convém atender primeiro à localização e topografia privilegiadas do pequeno maciço eruptivo.

Erguido mais abruptamente pela face norte, o relevo corta transversalmente, em arco aberto, a corrente de ar marítima gerando um microclima que, embora declaradamente mediterrânico, adquire feição oceânica com humidade quase subtropical. Por outro lado, a natureza ácida dos solos derivados das rochas granulares permitiu que, na sua rica flora autóctone, os elementos acidófilos se desenvolvessem par a par com plantas de maior alcalinidade ou mesmo calcícolas próprios da ampla série dos terrenos calcários rasos ou pouco levantados que rodeiam toda a Serra. É por isso que os carvalhos do Norte, o Querqus róbur e o Quercus pyrenaica marcam, com a sua presença, fácies de formações que na Península Ibérica só se encontram em situações do noroeste montanhoso. Admite-se porém na sequência de estudos recentes, que o clímax vegetal em Sintra, excluída a orla oceânica, é caracterizado por vários agrupamentos de carácter mediterrânico-atlântico onde ocorrem Querqus faginea (a azinheira), medronheiros, sobreiros e pinheiros mansos e que tão bem se desenvolvem no edafo-clima sintrano.

A enorme variedade litológica e a exposição franca a Sul do restante da Serra, em fachada convexa, muito mais xérica do que a Norte, que se estende desde a Rocas a São Pedro, concorrem, por seu lado, para a riqueza da matriz de habitats diversos e muito contrastados. Hidrograficamente a montanha apresenta, sobretudo na fachada exposta a Norte, vales, mais ou menos profundamente entalhados, que diferenciam um acentuado gradiente de habitats. Desde o litoral arenoso o clima é, primeiro, ameno nas várzeas e nos vales e encostas mais protegidas dos excessos térmicos, do frio chuvoso dos invernos e do quente seco dos verões mediterrânicos típicos, podendo ocorrer nas linhas de festo e nos morros graníticos, dentro de reduzidíssimas distâncias, contrastes muito fortes entre as tendências temperado-húmidas e as de acentuada termicidade e secura. Esta a razão para que dentro da relativa pequena extensão de Sintra e do seu termo, a biodiversidade absoluta, hoje tão valorizada nas preocupações conservacionistas que, felizmente acolhem cada vez mais apoios, quer a nível nacional, quer das agências internacionais, atinge aqui índices elevados que dificilmente têm comparação com qualquer outra parcela do território nacional.

Não admira que toda uma sucessão de ingleses aristocráticos tenha feito, desde longa data, de Sintra e de Monserrate o local escolhido, por excelência, para aclimatar nas suas quintas e jardins numerosíssimas espécies exóticas. Sob o clima ameno e primorosamente cuidadas, plantas das mais variadas origens geográficas rapidamente cresceram em magnífico enquadramento de cores e massas vegetais de construções românticas aqui erguidas como sonhos de impossível realização no Norte da Europa.

Mas atente-se que, séculos antes, já D. João de Castro, um dos nossos mais brilhantes investigadores quinhentistas, cansado e desencantado do curso da política no Oriente se refugiou no seu retiro dos “matos da serra” na Penha Verde, onde, dizem cronistas, chegava a cortar árvores de fruto para, em seu lugar, plantar arvoredos silvestres e estéreis, na busca

«do seu ideal de jardim: uma floresta de cedros, faias, carvalhos e pinheiros e, quanto ao mais terá deixado a Natureza entregue a si mesma».

Em reforço do elevado interesse puramente botânico de Sintra, remetemo-nos ao recente estudo: A flora da Serra de Sintra, Lisboa, 1991, de que foi principal autor A.R. Pinto da Silva, e em que tivemos a honra de colaborar. Nesta obra, faz o malogrado investigador a resenha dos estudos botânicos centrados na Serra de Sintra.

Assim, curiosamente se faz menção da que terá sido a primeira referência de índole botânica relativa a Sintra da autoria de Al-Munime Al-Himiari datada de há um milénio. E a menção poética deste escolar árabe que singelamente alude a que «na Serra crescem violetas bravas» serve aqui para registo do enorme peso das marcas desta cultura que profundamente influenciaram e ainda perduram na paisagem humana e física de Sintra.

Escasseiam por largo tempo documentos de interesse estritamente botânico relativos a Sintra. Há um relato curioso, datado de 1452, de dois embaixadores germânicos à corte já famosa de D. João II que, a respeito de Sintra, referem o ameníssimo clima, o Horto régio e a pequena ribeira onde crescem saborosas trutas. É fácil admitir que tal amenidade do lugar suporia exuberante vegetação e o sítio mais provido do que hoje de límpidas águas como aquelas que as trutas exigem.

Passar-se-iam, ainda, largas décadas até que o citado D. João de Castro se acolhesse em Sintra e com ele, possivelmente, todo um ciclo de introduções se espécies exóticas. Segundo alguns autores, terá sido D. João de Castro quem da China trouxe as laranjas doces e, como outros defendem, serem as faias das ilhas (Myrica faya), espécie macaronésica, abundantíssima nos Açores, por si introduzidas. Há que esperar pelo século XVII para botânicos importantes, como Grisley e Tournefort, iniciarem levantamentos direccionados sobre as plantas e o seu termo.

No final do século XVIII e no início do século XIX há a registar o relato importante da dupla Hoffmannseg & Link sendo de mencionar, também, a importante contribuição de botânicos nacionais de estirpe de Brotero e do seu discípulo Valorado. Porém, é a Welwitsch, nos meados do século XIX, quando D. Fernando II construía o seu palácio e plantava o Parque da Pena, que se deve a recolha da mais valiosa colecção arquivada no Herbário da Universidade de Lisboa relativa a Sintra e de inestimável valor científico e histórico.

Registe-se apenas que a partir de estudos botânicos recentemente retomados se confirmam existirem, na área em estudo – em geral em populações normalmente bem estabelecidas –, diversas taxas endémicas com especial relevo para a Armeria Pseudoarmeria, Silene cintrana, Dianthus cintranus, Coincya cintrana, a variedade condensatum de Centaurium spicatum e a subespécie densiflorum de Echium tuberculatum.

Mas não são apenas as espécies endémicas que enriquecem a Flora de Sintra. As referidas características edafoclimáticas possibilitam que aqui vegetem, espontaneamente, um bom número um bom número de espécies macaronésicas, representadas na Serra por uma notabilíssima série de fetos como a Davallia canairiensis, Asplenium Hemionitis, Dryopteris guanchica e Woodvarvia radicans.

Não deixa de ser curioso referir que nas observações destes botânicos nunca se faz menção, pelo menos até Welwitsch, da presença do pinheiro bravo, ainda hoje tão frequente na Serra. Fogos catastróficos têm feito diminuir a sua importância no coberto da Serra, como o que, há cerca de um quarto de século, causou numerosas vítimas entre os militares que combatiam as chamas. Na sequência dos fogos desenvolveram-se, em muitos locais, extensos acaciais.

Na realidade, das informações daqueles botânicos e de outras fontes históricas, inclusive por gravuras antigas, sabe-se que o actual coberto vegetal de Sintra, onde se contam, pinheiros, acácias, e outras exóticas, difere muito daquele que durante milénios cobriu o dorso e as encostas mais altas da Serra. Dominariam, nas maiores alturas e nos penhascos, os matos repetidamente modelados pela pastorícia e pelo fogo que deixavam bem visíveis a ossatura das penedias que quase regularmente pontuam o perfil da Serra susceptíveis de serem agricultados, a ocupação humana terá sido sempre importante.

Mas Sintra não se reduz à Serra propriamente dita. De um e de outro lado do relevo a paisagem, ainda mais humanizada, vasta e nivelada, reparte-se em belo efeito, num equilibrado uso urbano e agrícola. Dos lados de Mafra e Ericeira é o contínuo correr dos nevoeiros e neblinas e o fazer e desfazer das nuvens sobre o perfil longínquo da Serra. Para Sul e Nascente a luz é mais forte e a mediterraneidade mais acentuada. Na maior parte do tempo, em resultado da corrente da nortada e na ascensão a que o relevo obriga, dá-se a condensação da carga de vapor, em boa parte captada sob a forma de chuva oculta, depositada nos andares mais elevados sob o copado arbóreo e as paredes lisas das rochas dos diversos píncaros.

Por esta via se mantém elevada a humidade atmosférica na maior parte do tempo e se abatem os excessos térmicos. O acréscimo de precipitação – que instrumentos correntes da meteorologia não registam – é determinante da estrutura e reacção do coberto vegetal local. O solo tende a manter-se húmido em permanência, já que a maior parte da radiação directa é interceptada pela camada das nuvens, sendo a actividade fotossintética raramente afectada por escassez hídrica.

A estrutura do coberto da vegetação, com maior densidade e volume do que a encosta sul, aumenta o efeito de intercepção e cria condições para o desenvolvimento de abundante vegetação epifítica natural. O solo encontra-se sempre bem revestido e protegido por espessa camada de folhada em decomposição lenta, que limita a escorrência laminar e reforça as nascentes e as linhas de água, deste modo muito mais abonadas a Norte do que a Sul.

Notável é também a vegetação criptogâmica, mais requerente em higrofilia do que a superior, quer se trate dos musgos, líquenes ou fetos, onde os próprios fungos encontram também naturalmente, nos andares superiores da Serra, habitats privilegiados de grande diversidade e interesse.

Referidos foram já alguns factores de natureza geológica geomorfológica, mas também climática e microclimática, determinantes na diferenciação estrutural e na dinâmica do coberto vegetal que, como ainda hoje, tornaram a Serra atraente aos povos que aqui primeiro se fixaram em posição de domínio da larga faixa litoral, fazendo destes sítios locais de culto e contemplação espiritual da natureza.

Sabe-se como é longa, nestes ambientes, a continuada permanência e influência humana. Talvez atraídos pelo sagrado e pelo êxtase de horizontes largos, que cada dia as neblinas vendam e desvendam, os homens de cada cultura têm mais facilmente, nestes sítios, a experiência dos seus limites e fronteiras. Abundam nos píncaros marcas de altares pré-cristãos, primeiro, e depois ermitérios, como na Peninha, e conventos, como nos Capuchos.

Mas se foi sempre tão intensa e prolongada a influência humana sobre o se coberto de vegetação natural, será que o que agora existe demasiado artificializado, sobretudo na imediata vizinhança dos núcleos populacionais e nas quintas de Sintra, é ainda merecedor de atenção, cuidado e protecção?

A originalidade e a diversidade das plantas naturais que justificaram o celebrado interesse de botânicos de épocas passadas, ainda se mantém?

A resposta é felizmente afirmativa. Apesar de toda a área se encontrar profundamente humanizada, serem fortes as marcas de depredações e abusos de variada ordem, a Flora e a Vegetação de Sintra, são, ainda hoje, um valor de alto interesse estético, científico e educacional, do conjunto de factores que, em meu entender, justificam bem a inserção de Sintra na lista de Património Mundial na categoria de Paisagem Cultural.