Depoimentos

Rafael Moreira

Sintra Renascentista

Passada a época dos Descobrimentos, a corte e a alta nobreza de Portugal abriram-se às novas formas de civilização vindas de Itália e foram seduzidas pelas maravilhas do Oriente. Nenhum outro local, nos arredores de Lisboa, se adaptava tão bem a estes ideais como a Serra e a Vila de Sintra – velha coutada real, montanha com paisagens magníficas e território de lazer propício às mais exóticas experiências arquitectónicas (desde a construção do palácio gótico-mourisco de D. João I, “Senhor de Ceuta” em Marrocos, em 1415), situado num promontório sobre o Oceano, lembrando a proa de um navio: o clima geográfico desdobrou-se em microclima cultural, social e artístico sem igual.

As riquezas da vida da corte em veraneio, a solidão mística dos altos rochedos desenhando formas bizarras em pleno bosque, são os dois pólos deste perfil ímpar: o poder e a fuga ao mundo, a residência de luxo e a ermida. As grandes famílias nobres aqui vinham na época de estio, mandando erguer as suas “vilas” ao gosto italiano com nomes sugestivos – Penha Verde, Ribafria, Penha Longa… rodeadas de parques e jardins de recreio; mas simultaneamente (e por vezes por iniciativa das mesmas pessoas) estabelecem-se, nos rochedos agrestes, comunidades cenobitas, atraídas pela largueza das vistas sobre o mar e sobre o céu, refazendo velhas “azóias” árabes.

Nesta dicotomia paradoxal de Sintra encontramos um dos ideais da vida da corte renascentista, tal como referiu André Chastel. O gosto pelo poder e a sua recusa, dupla face de uma realidade que encontramos na Renascença reflectida da literatura bucólica dos Antigos (Ovídio, Virgílio, Horácio e Plínio). O Livro do Cortesão de Castiglione (Veneza, 1528) – aliás dedicado a um português, o Cardeal D. Miguel da Silva, que vezes sem conta pernoitou em Sintra – estabelece um programa de vida baseado na “corte ideal” de Urbino, em Itália; porém, sem o saber (ou sabendo-o por D. Miguel?), este nostálgico e idealizado retrato, mais do que em Urbino ou no Vale de Loire, descobre Sintra o seu lugar de eleição.

É aqui que os príncipes e grandes senhores se reúnem para caçadas e passeios nos bosques, reminiscências dos célebres romances de cavalaria; é aqui que humanistas e antiquários se juntam para conversas intelectuais, que as damas da corte se entretêm com jogos, leituras e música. O primeiro elogio de uma terra escrito em Portugal segundo os modelos antigos, é o poema Syntra (1546) da humanista Luísa Sigeia, dama da princesa D. Maria, filha do rei D. Manuel – nele se compara a região a uma Arcádia habitada por ninfas e faunos; e mesmo um historiador avisado como o era Damião de Góis (1522), acreditava nas palavras saídas da boca de um pescador que teria avistado e ouvido o canto do tritão, no Cabo da Roca…

E assim nasceu um “mito de Sintra”, De que há vestígios desde os primeiros amadores de lendas e de epígrafes antigas. O alemão Valentim Fernandes, amigo de Dürer, tipógrafo e coleccionador, referia a descoberta, em 1504, de inscrições romanas contendo o texto de uma sibila segundo o qual os Portugueses dominariam todo o Oriente. Alguns fragmentos proféticos sobre a epopeia portuguesa foram também deixados na Serra de Sintra, qual Walhalla, pelo romance Crónica do Imperador Clarimundo (João de Barros, 1520) e pelo introdutor do teatro em Portugal, Gil Vicente (por volta de 1530); e é, naturalmente, no cimo da Serra – de onde D. Manuel, do seu mosteiro da Pena (penha, “rocha”; fundado em 1502), vigiava a chegada das naus da Índia, transmutado em 1838 no primeiro palácio romântico da Europa, com meio século de avanço sobre os castelos wagnerianos de Luís II da Baviera – que Camões situa, nos seus Lusíadas (1572), a visão neo-platónica de um mundo novo, pleno de harmonia e de beleza…

Não é só a atmosfera e o espírito do local que servia de inspiração para estes devaneios, nem o facto – tão sugestivo – da intimidade dos elementos nesta finisterra que se sabia ser o ponto mais ocidental da Europa. Textos antigos dele faziam o «Monte da Lua» e a abundância dos vestígios arqueológicos convidava às investigações. Assim, o Príncipe D. Luís, acompanhado pelo desenhador e epigrafista Francisco de Holanda, explorava estas paragens em busca de inscrições, descobrindo, em 1543, um templo romano circular erguendo-se sobre o mar, em Colares, e dedicado ao Sol e à Lua.

O sábio André de Resende estudou aturadamente este conjunto de vestígios (De Antiquitatibus Lusitiniae, Évora, 1593, mas composto trinta anos antes), cuja autenticidade começa hoje a ser reconhecida (Cardim Ribeiro). É, aliás, entre Lisboa e Sintra que, na sua Quinta de Nossa Senhora dos Enfermos em Camarões, vive Francisco de Holanda, para se dedicar às investigações sobre arquitectura antiga (sendo disso exemplo a ermida de São Mamede de Janas) e a uma “vida de filósofo antigo”.

Parecem ter sido os ricos mercadores italianos de Lisboa que, no início do séc. XVI, descobriram as virtudes de Sintra a concentração mais importante de “villas” do Primeiro Renascimento em Portugal, ou até de toda a Península Ibérica. Ainda pouco estudadas (por terem permanecido nas mãos de antigas famílias de proprietários), poderia indicar-se, a título de exemplo, a Quinta do Cosmo (de Cosimo Affaitati, por volta de 1540), com o seu raríssimo pombal; o Palácio de Ribafria (cerca de 1534, na Vila), e a Torre de Ribafria, de seu irmão, na várzea, rodeadas por lagos e jardins. Os Morelli, de Florença, viviam nas proximidades, sendo vizinhos de Holanda. Não é possível escrever a história da arquitectura civil do Renascimento na Europa sem passar por estas casas, às quais as ricas pedreiras de mármore da região emprestam um encanto italiano, carregado de exotismos. Não foi por acaso que o escultor normando Nicolas Chanterenne, vindo de Gaîllon, ali criou uma das primeiras obras primas segundo modelos antigos – o extraordinário retábulo em alabastro do Convento da Pena (1529-1532).

Se se houvesse que escolher, neste foco renascentista, uma obra emblemática, seria, a meu ver, a Penha Verde, numa das encostas da Serra que domina a Vila e a várzea, o céu e o mar. O Vice-Rei das Índias, D. João de Castro, ali criou em 1543 um conjunto único onde a paisagem domina a arquitectura (reduzida a uma capela circular copiada de Vitrúvio) e onde jardins, repuxos e parques formam um percurso cheio de descobertas e de vistas sobre o Atlântico. Num Terraço natural dominando o horizonte infinito, dispôs a sua colecção de mármores antigos, segundo os conselhos do seu amigo banqueiro florentino Luca Giraldi, misturando-os com as pedras gravadas e trazidas das suas expedições do Mar Vermelho (1538) e conquistas na Índia, formando o mais estranho museu lapidar ao ar livre que se possa conceber.

Restam apenas dois baixos-relevos hindus, uma Madonna florentina do séc. XV (Desiderio de Settignano) e uma inscrição em sânscrito, junto a uma dedicatória em latim que mandava gravar no rochedo e que constitui a chave do conjunto. Tratava-se de uma recolha de testemunhos cosmológicos (ou supostamente) das principais culturas do mundo; e este local sublime era pano de fundo para conversas eruditas e lições sobre estrelas e planetas – um autêntico observatório de cosmografia, onde se podia apreciar as harmonias da “música do mundo”…

D. Álvaro de castro, seu filho, acrescentou estatuetas trazidas de Roma (por exemplo, um Hércules de Villa Giulia, ainda existente, que lhe fora oferecido pelo Papa no seu regresso de uma Embaixada, em 1563) e aí mandou construir um soberbo palácio do classicismo, no qual Francisco de Holanda colaborou.

Mas, no outro extremo da propriedade, sobranceira ao Atlântico – e conforme voto de seu pai –, fundou, em 1560, um convento capuchinho encastrado nas falésias viradas ao Oceano – o Convento dos Capuchos – que Filipe II de Espanha considerou como sendo o mais modesto do mundo e onde William Beckford confessava querer viver os seus últimos dias. Entre a escala miniatural e a magnitude cósmica, “a paisagem filosófica” encontrou em Sintra um dos mais belos testemunhos da arte e da cultura do Renascimento.